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Tartan – As velas da liberdade

quinta-feira, 24 março, 2011 @ 11:41 pm

CapaTartanAngola foi descolonizada recentemente. Depois da independência de Portugal, em 1975, o país foi levado a uma guerra civil terrível entre comunistas apoiados por Moscou e Havana, outra facção com algum apoio da China e maoístas financiados pelos Estados Unidos. A história contada no livro Tartan – As Velas da Liberdade começa “nos anos da fúria revolucionaria”, quando seis rapazes preparam um veleiro para fugir de Luanda para Portugal.

Os irmãos Nuno (que ficou em Luanda) e Pedro Silveira Ramos são os narradores da epopéia que junto com o outro irmão Toninho Cenoura, os ruivos, e o cunhado Miguel, mais Sérgio, o engenheiro de bordo Zé e o Lumeno, todos na faixa dos 20 e poucos anos, formaram a tripulação do Tartan, um Sparkman & Stephens de 41 pés (13 metros), comprado em 1974 pelo irmão tio de Sérgio para participar de futuras regatas entre a Cidade do Cabo e o Rio de Janeiro – hoje a Heineken Cape to Rio, que teve a primeira edição em 1971 (no livro consta 1974).

CanariasPortugalProanagua

Foram seis meses de preparação, com saídas todos os finais de semana, ao som de Bob Marley, em direção à Ilha do Mussulo, até que o Tartan e tripulação estivessem prontos para a partida. Ou quase prontos. Numa economia de guerra, onde não se tinha quase o que comer diariamente, os rapazes fogem do país em estado de sítio na véspera das come­mo­ra­ções do ter­ceiro ani­ver­sá­rio da inde­pen­dên­cia, em 10 de novembro de 1978. Mais uma vez o rumo aparente era Mussulo, só que, desta vez, sem previsão de retorno.

RadiogoniometroPode parecer banal fazer Luanda – Portugal em um barco de 41 pés, mas naquela época “GPS era uma sigla inexistente” e os instrumentos de navegação a bordo se resumiam a uma bússola meia emperrada, um mapa da costa africana numa escala gigante (1: 2500000) e… um rádio de pilhas. O Tartan partiu com o motor avariado, as baterias quase mortas, sem rádio VHF nem luzes de navegação, com um medidor de velocidade que não podiam se fiar para a navegação estimada (usava-se o método da barca – jogava-se um pedaço de cortiça n´água e media-se o tempo) e com o caixa de bordo quase vazio. Quem safou a onça foi o prosaico radio de pilhas que, made by Zé Mendes, serviu de goniômetro ao captar as estações de radio na costa africana.

LiberiaZe

Depois de 23 dias de navegação quase às cegas e de escapar de ser atropelado por uma “gigante bigorna de aço” flutuante, a intrépida tripulação chega, enfim, ao porto de Monróvia na Libéria, país africano que tem a maior frota de navios mercantes dos sete mares. As aventuras são maiores em terra do que no mar. Graças ao encontro casual com a cabo-verdiana Odina, dona de um restaurante e um bordel, os marujos se refestelam de comida, álcool e sexo. Quando conseguem pegar o rumo para as Ilhas Canárias, não sem antes se safar por um triz de uma malta que queria lhes roubar, já são na condição de refugiados políticos.

Clica aí para continuar lendo.

CanariasPortugalBatatas

A tática para subir era seguir o meridiano 20º Oeste. Na noite de Natal o casco azul-marinho do Tartan enfrenta com galhardia a primeira tempestade no Atlântico Norte, “onde se registram, sem que os rapazes o saibam, os piores temporais dos últimos 25 anos”. O réveillon foi passado no mar, o frio aumenta junto com o trabalho de costurar as velas e a chegada à Las Palmas, depois de supostas 1700 milhas e 26 dias de mar, foi muito dura.

LiberiaCanariasVelameO inverno de 1979 foi violento no Hemisfério Norte (lembra da catástrofe da regata Fastnet?), mas a intrépida trupe, agora melhor equipada com roupa de tempo e mantimentos, fez as 680 milhas até Portimão sem grandes problemas, apesar dos fortes ventos e do mar grosso. “O continente europeu solidifica-se à proa dos anseios e receios da tripulação. É como fazer um bordo na vida, no meio de um temporal de emoções”.

É o fim dessa odisséia de 56 dias. Como na entrada no diário de bordo assinada por Sérgio e Miguel: “Enfim, é a alegria da chegada a terras de Portugal e a certeza de que os marinheiros não nascem, fazem-se”. Depois, “rumaram cada um à sua vida”.

Numa entrevista que pesquei no site Recordar Angola, Pedro conta que, inspirado no livro de Joshua Slocum, já tinha a vontade de fazer uma viagem de barco. Mas a ideia da fuga surgiu mesmo “numa boa velejada no Tartan num fim de semana com duas correspondentes da BBC em Luanda”, quando Nuno acrescentou que “tudo começou, e terminou!, com uma bebedeira descomunal”. Não é à toa que barco começa com bar.

CanariasCabineA publi­ca­ção desta his­tó­ria, mesmo 32 anos depois, além do distanciamento dos fatos ajuda-​nos a com­pre­en­der um período pouco conhecido, pelo menos pra mim, da His­tó­ria de Angola. Mergulhados numa guerra civil e na sopa de letrinhas das siglas – MPLA, TPA, FAA, FNLA, DISA, FAPLA, UNITA -, a primeira parte do livro nos mostra como era a vida “no auge da festa macabra”, numa cidade que “começou a rebentar pelas costuras”. E mais: enquanto no céu as estrelas combatem contra balas tracejantes, o cheiro dos charutos dança com o cheiro de pólvora e sob a trilha sonora das katiuskas, o rum se mistura com a rumba. A surpresa foi saber que a cooperação cultural brasileira chegou na voz de Chico, Caetano e Alcione e que meia hora antes do recolher obrigatório às 22 horas, a magia de Jorge Amado inundava os poucos aparelhos de televisão com a sua Gabriela.

O escritor angolano José Eduardo Agualusa, que se autodenomina afro-luso-brasileiro  (exilou-se no Recife, morou no Rio e fundou aqui a editora Língua Geral, dedicada a autores lusófonos) diz no prefácio que Tartan – As Velas da Liberdade “lê-se de um só fôlego, como quem lê um bom romance de aventuras” e fecha alertando que “é bom haver livros assim por­que nos devol­vem à vida, ao puro sabor da vida, e nos per­mi­tem con­ti­nuar a acre­di­tar que em havendo von­tade, e um barco pro­pí­cio, toda a via­gem é possível”. Concordo Zé Eduardo, e os equipamentos propícios são aquele que temos à mão, afinal, não foi Joshua Slocum que deu a volta ao mundo fazendo navegação com um relógio que só tinha um ponteiro?

Tartan – As Velas da Liberdade, editado pela Albatroz, pode ser encomendado na Porto Editora ou na Wook . Boa leitura.

Estava em Lisboa quando recebi email do Rodrigo Fidelis, leitor aqui do blog, encomendando este livro que, infelizmente, ainda não foi editado em terras tupiniquins. Pronto Rodrigo, agora posso enviar teu livro pelo correio e obrigado pela dica. Gostaria de agradecer também ao Nuno Silveira Ramos, que gentilmente me enviou as fotos – algumas inéditas! – que ilustram este post. Como está explicado no livro, na época de guerra em Luanda não havia filme fotográfico e as melhores fotos só apareceram depois da Libéria e Canárias. Valeu oh pá!

19 Comentários leave one →
  1. soumdesconhecido@gmail.com permalink
    sexta-feira, 25 março, 2011 @ 6:53 am 6:53 am

    vou pedir o livro.

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    • sexta-feira, 25 março, 2011 @ 12:01 pm 12:01 pm

      soumdesconhecido,

      Depois me conta se gostou das aventuras dos rapazes.
      Tentei mandar procê o email de Mamão, do house boat Patuá, e deu caixa postal inválida.
      Bons ventos sempre,

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  2. Rodrigo permalink
    sexta-feira, 25 março, 2011 @ 9:46 pm 9:46 pm

    Putz Hélio! que resenha f..d…!!! desse jeito vc me lasca!! tava pensando em ler o livro e agora mais ainda… vc me deixou, te juro, emocionado com sua narração… envie com urgência, dentro do possível, o livro para meu deleite… e deixo aqui registrado que quem quiser ler, depois de mim, pode entrar em contato, ta na hora de montarmos uma rede de troca de livros bons de naútica como esse… e nao seria esse o primeiro…rsrs!! ah tenho muitos títulos aqui comigo…quem se aventura… abraço Hélio!!!… manda logo rsrs!!!

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    • Davi Duarte/) permalink
      segunda-feira, 28 março, 2011 @ 2:57 pm 2:57 pm

      Ah… “Seu” Hélio… Parabéns! Por causa da boa resenha, lá vou eu comprar mais um náutico!!! Rs… O livro parece ser ótimo.

      RODRIGO: Eu topo a rede para troca de livros! Escreva-me, por favor e vamos conversar sobre isso.

      Abraço a todos e bons ventos,

      Davi Duarte/)

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      • quarta-feira, 30 março, 2011 @ 5:19 pm 5:19 pm

        Seu Davi,

        Desculpe gastar o espaço de sua estante, mas vai valer a pena. Eu é que não posso me dar a este luxo, tenho que ler e passar a frente. Também me inscrevo no clube da troca de livros.
        Bons ventos e boas leituras, sempre

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      • Rodrigo permalink
        quarta-feira, 30 março, 2011 @ 5:23 pm 5:23 pm

        Como faço para entrar em contato com o David Duarte? bom ainda nao sei mas deixo o meu mail: _rodrifidelis@yahoo.com.br_ (ps! copie sem os underlines).
        aguardo-os!!
        abrço!

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    • quarta-feira, 30 março, 2011 @ 5:09 pm 5:09 pm

      Rodrigo,

      Enviei seu livro pelo Correio na segunda-feira. Acho que a espera vai valer a pena.
      Que ideia genial de fazer um clube do livro aqui no blog. Davi, aí em cima, já se interessou.
      Só não é uma boa deixar endereços aqui na caixa de comentários. Acho que deve ser por e-mail privado. Depois vou tentar montar alguma coisa lá na Estante do MaraCatu.
      Boas leituras, sempre

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      • Rodrigo permalink
        quarta-feira, 6 abril, 2011 @ 7:04 am 7:04 am

        Ola Helio… recebi o livro ontem e ja estou a devorá-lo, obrigado mais uma vez. Aos interessados na Maracarede de compartilhamento de livros o meu email esta no comnets acima ok!
        Bons ventos.
        Rodrigo Fidelis

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  3. Hugo permalink
    segunda-feira, 28 março, 2011 @ 3:58 pm 3:58 pm

    Confesso que fiquei surpreso!!! Sou angolano, 23 anos e vivo no Reino Undio… Eu e um amigo (tbm angolano) temos o sonho de atirarmo-nos ao mar numa direccao e voltar pela outra, e ate ja compramos um projecto do Cabinho (Multichine 31) e estamos a nos preparar para construir (em casa mesmo)… mas sempre seguimos blogs e sites brasileiros (em especial o Maracatu) por falta de referencias angolanas, e, para minha surpresa, encontro aqui o primeiro sinal de angolanos que ja fizeram algo, ao menos, parecido… Muito obrigado Helio por compartilhar connosco uma informacao dessas!!! Bons ventos sempre

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    • quarta-feira, 30 março, 2011 @ 5:14 pm 5:14 pm

      Hugo,

      Obrigado a você por acompanhar o MaraCatu Weblog. Não conheço o projeto do Multichine 31, mas Cabinho é um designer porreta (em nordestinês significa muito bom).
      Boas construções, sempre

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  4. Nuno S. Ramos permalink
    sábado, 9 abril, 2011 @ 9:44 am 9:44 am

    Muito bom, Hélio
    Abraço

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    • quinta-feira, 28 julho, 2011 @ 10:30 am 10:30 am

      Nuno,

      Que bom que gostou da resenha do Tartan.
      O livro já está rolando de mão em mão dos velejadors brasileiros. O leitor Rodrigo Fidelis criou a MaraCaRede de compartilhamento de livros, uma espécie de “Clube do Livro”, e depois de ler já passou para Egle do blog Pintando o Setti.
      Bons ventos sempre e vida longa ao Tartan,

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  5. egle permalink
    sábado, 10 dezembro, 2011 @ 6:21 pm 6:21 pm

    O Rodrigo já me mandou o livro e também o devorei . Quem se habilita agora na MaraCaRede de compartilhamento de livros ?

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  6. domingo, 11 dezembro, 2011 @ 5:42 pm 5:42 pm

    Euuuuuuuuuuuuuuuuu!!!!

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  7. quinta-feira, 15 dezembro, 2011 @ 10:44 pm 10:44 pm

    Que legal. A MaraCaRede de distribuicao de livros está de vento em popa. A Egle já leu e passou pra Cris.
    Uma dica ao próximo leitor pretendente: ao deixar um comentário avisando que quer ler o livro, marque a caixinha “Notificar-me os comentários mais recentes via e-mail” para receber email quando a Crhis terminar.

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  8. domingo, 18 dezembro, 2011 @ 3:57 pm 3:57 pm

    Coitados dos autores, não ganham nada com a ideia!

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    • sábado, 7 janeiro, 2012 @ 9:40 pm 9:40 pm

      Rui,
      Realmente o ideal seria que todos comprassem o livro. Pelo menos estamos divuldando a viagem do Tartan. Não acredito que esteja fazendo algo errado. Costumo emprestar meus poucos livros, CDs e um DVD depois de visto.
      Bons ventos sempre,

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  9. quarta-feira, 18 janeiro, 2012 @ 11:36 am 11:36 am

    ja terminei de ler o livro Tartan. quem quiser é so me avisar que envio. bons ventos

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